sábado, fevereiro 27, 2016

Crônicas de Luiz Britto : LOUCURAS DO CARNAVAL

Hoje vamos iniciar com esta bela crônica do meu amigo e artista Luiz Britto,você vai amar ler suas escritas, pois eu sou fã há uns 6 anos . Ele tem me enviado por email, então convidei-o para ter suas escritas aqui no blog ,faz um tempinho que convidei, como sou uma pessoa de palavra ai está :


LOUCURAS DCARNAVAL


Coisa mesmo de Carnaval. A música, aquele povo na rua, a bebida, a agitação e então Seu Zé perde a cabeça, Joãozinho mete os pés pelas mãos, Dona Francisca faz o que não devia. E foi o que aconteceu. Alguém iria imaginar um desfecho desses, alguém iria adivinhar o que se passou? Aquela saída alegre, os dois trôpegos e algo bêbados, Seu Oscarzinho enlaçando a cintura de sua querida ex, a bela e risonha Viviane, e os dois deixando o camarote de Ondina lá pelas duas da matina, os dois acabando naquela lancha, e a lancha sem marinheiro, Seu Oscarzinho no comando, embicando a lancha para o miolo da baía, Viviane dormindo a seu lado, a cabeça repoisada numa almofada, feliz, poses de rainha?
       Dizem que o travesseiro é bom conselheiro, e talvez foi o que aconteceu. Aquele travesseiro (ou almofada) deu um bom conselho e Dona Viviane seguiu. Já estava há tempo querendo seguir aquele conselho e seguiu. Não se pode acusar uma personagem de nada --- e isso aqui não é nenhum tribunal, um júri popular. As personagens fazem o que querem, e o autor não tem nada com isso. E, aliás, além de madura e vivida, Dona Viviane era advogada, formada, procuradora experiente e sabia onde tinha o seu nariz. Se não sabia, devia saber. Se cedeu é porque queria ceder, ninguém sabe o que ronda e dirige o coração das mulheres. Quem foi rei, sempre tem a sua majestade, e como Oscarzinho já foi marido, já foi rei, sempre guardou a sua majestade, e é um tipo posudo, charmoso, com aquele sorriso matreiro, olhar de gato sonso, pode-se esperar de tudo dessa dupla. Reconciliações, novos votos de amor, e isso especialmente em pleno seio da amada baía de Todos-os-Santos, que já viu foi coisa, já abrigou tantos casos de amor. Um a mais não iria fazer diferença alguma. E nem se culpe a lua ou as estrelas, ou o vento que passa múrmuro e insinuante pra nunca mais voltar, a presença de alguma sereia num banco de areia, ou os queixumes das virgens longe, maré do pré-amar...
       É o imponderável. Viviane de novo nos braços do seu ex, a madrugada chegando, o sol rompendo a noite, devolvendo a luz e o esplendor. Nuvens correndo alegres, risonhas, a manhã prometendo delícias, a vida tantas prosperidades, alegrias infinitas, recônditas promessas, uma lassidão, uma vontade de fazer o bem, de nada ser, deixar correr, virar um peixe naquele mar tão bonito.
       --- Que loucura --- disse a bela, abrindo um olho.
       Os dois no apertado camarote, Oscarzinho ainda a dormir, nos braços mornos e amantes da sua antiga companheira.
       --- É mesmo --- disse ele.
       --- Você também acha? --- ela já procurando justificativa, querendo montar a sua defesa.
       --- Acha o quê? --- Oscarzinho abrindo um olho.
       --- Que foi uma loucura?
       --- Não.
       --- E foi o quê?
       Sim, foi o quê, Dr. Oscarzinho? A peteca agora tá no seu lado.
       --- Foi um gesto de amor... --- começou ele, um vago sorriso, já satisfeito com aquela “loucura”.
       Coisas que acontecem desde que o mundo é mundo.
       --- E agora como é que fica?
       Sim, ele tentou se levantar, botar as ideias em ordem. Em primeiro lugar, cadê o seu uísque e seu cigarro? Não sabia pensar sem o seu uísque e seu cigarro. As ideias embotavam, ficava confuso, tudo ficava obscuro, ele não sabia mais o que fazer, o que dizer, que direção tomar. Assim, espichou a mão, botou o resto do uísque que sobrou num copo, acendeu o primeiro cigarro. Expeliu a fumaça e então sorriu para Viviane:
       --- É o amor, Vivi. E viva o amor.
       A vitória do amor. Amor com A maiúsculo. Amor que vence todas as barreiras...
       Viviane, contente, algo faceira, mas fazendo uma pequena careta, erguendo uma inútil barreira:
       --- Não sei não... Ih, estou com uma boca tão pegajosa...
       A boca pegajosa, a mão pegajosa, havia alguma coisa pegajosa. Tentou se movimentar, sair daquela cama, não pôde. A prostração era maior.
       --- Vou fazer um café pra você --- prometeu o galã, já na terceira tragada.
       --- Não, deixe que eu faço --- disse ela e continuou deitada, os olhos outra vez fechados.
       A lancha ancorada perto da praia, a embarcação balançando como um berço, e a princesinha dormindo, no terceiro sono. Isso não era a felicidade? Não pensar em nada, não ser nada, não ter contas a pagar, quase não existir?
       Ao lado, Oscarzinho ficou pensativo, já desperto, craniando coisas, botando os seus pensamentos em ordem, suas contas em dia. Precisava descolar uma grana, pagar todos os devedores, tirar a sua embarcação daquele sufoco, daquele prometido naufrágio. Olhou para a sua donzela, perto da janela, a fronte banhada pela claridade da manhã e pensou consigo: “está no papo, queridinha, hoje você me tira desse aperto...” E foi aí que Viviane acordou, deu um pulo da cama, já desperta, uns olhos quase alucinados:
       --- Onde é que eu estou? Que é que eu estou fazendo aqui?
       E o resto é a velha história. Tudo que ela já sabia de cor e salteado. As embromações do seu ex, sua conversa fiada, suas insinuações, elogios, homenagens, tudo que ele fazia e dizia quando queria tirar alguma vantagem --- aquele Oscarzinho não era gente!
       Veio logo com conversa de dinheiro. Que estava apertado, que precisava de um préstimo, de um empréstimo, de uma ajuda financeira, um aporte imediato de alguns milhões porque senão...
       --- E sua lancha? Venda sua lancha --- Viviane já bem desperta, agarrada com a sua “bolsa”.
       Não havia trazido a sua bolsa, mas havia agarrado a sua penca de chaves --- na hora da emergência qualquer coisa servia. Mulher só vive agarrando a bolsa...
       A voz de Oscarzinho sumindo, uma cara de choro:
       --- Minha lancha, Vivi? Você quer que eu venda a minha lancha?

Luiz Britto é artista plástico e escritor --- 74 livros publicados

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